23 de julho de 2009

majestade


4.
Poucos anos atrás, surpreendido por um pesado aguaceiro, com umas duas horas à toa depois de esperar por um amigo que acabou não aparecendo para almoçar, fui me abrigar num prédio de granito e vidro fumê na Victoria Street, em Londres, sede da filial do McDonald's em Westminster. O clima dentro da lanchonete era solene e concentrado, Os clientes comiam sozinhos, lendo jornais ou olhando para os ladrilhos marrons, mastigando com uma severidade e rispidez que fariam a atmosfera de uma estrebaria parecer sociável e bem-educada.
O ambiente servia para tornar absurdos todos os tipos de idéia: que os seres humanos podem às vezes ser generosos uns com os outros sem esperança de receber alguma coisa em troca; que os relacionamentos ocasionalmente podem ser sinceros; que a vida talvez valha a pena suportar... O verdadeiro talento da lanchonete estava na geração de ansiedade. A luz dura, os sons intermitentes de batatas congeladas mergulhando em bacias de óleo e o comportamento frenético dos funcionários no balcão convidavam a se pensar em solidão e na falta de sentido da existência num universo violento e caótico. A única solução era continuar comendo numa tentativa de compensar o desconforto provocado pelo cenário.
No entanto, a minha refeição foi perturbada pela chegada de uns trinta adolescentes finlandeses louros e altíssimos. O choque de se verem tão ao sul e de trocar a neve glacial por uma simples chuva os havia deixado extremamente bem-humorados, o que eles expressavam abrindo as embalagens dos canudinhos, cantando alto e pulando nas costas uns dos outros - deixando confusos os funcionários da lanchonete sem saber se deveriam condenar tal comportamento ou respeitá-lo como uma promessa de apetites vorazes.
Levado pelos volúveis finlandeses a encerrar às pressas a minha visita, desocupei a mesa e saí para a praça logo ao lado, onde notei pela primeira vez as formas bizantinas incongruentes e grandiosas da Catedral de Westminster, o seu campanário em tijolos brancos e vermelhos erguendo-se 87 metros nos céus nevoentos de Londres.
Induzido pela chuva e a curiosidade, entrei num saguão cavernoso, mergulhado num breu contra o qual milhares de velas votivas se destacavam, as chamas douradas tremeluzentes sobre mosaicos e representações entalhadas da Via Sacra. Havia cheiros de incenso e sons de preces murmuradas. Pendendo do teto, no centro da nave, um crucifixo de dez metros de altura, com Jesus de um lado e sua mãe do outro. Em torno do altar principal, um mosaico mostrava Cristo entronizado nos céus, rodeado de anjos, os pés descansando sobre um globo, as mãos segurando um cálice transbordando com o seu próprio sangue.
O alarido superficial do mundo externo dera lugar ao deslumbramento e ao silêncio. As crianças ficavam perto dos pais e olhavam em volta com um ar de intrigante reverência. Os visitantes instintivamente sussurravam, como se imersos num sonho coletivo do qual não desejassem emergir. A anonimidade da rua havia se subordinado a um tipo peculiar de intimidade. Tudo que é sério na natureza humana parecia ter despertado: pensamentos sobre limites e infinitude, sobre impotência e sublimidade. O trabalho de cantaria dava relevo a tudo que era acomodado e monótono, e inspirava um desejo de estar à altura da sua perfeição.
Depois de dez minutos na catedral, uma série de idéias que seriam inconcebíveis do lado de fora começaram a assumir um ar de sensatez. Sob a influência do mármore, dos mosaicos, da escuridão e do incenso, parecia totalmente provável que Jesus fosse o filho de Deus e tivesse caminhado sobre as águas do mar da Galiléia. Na presença das estátuas de alabastro da Virgem Maria, em contraste com as seqüências regulares de mármores vermelhos, verdes e azuis, deixava de ser surpreendente pensar que um anjo pudesse a qualquer momento descer, atravessar as densas camadas de nuvens sobre Londres, entrar por uma janela na nave, tocar um trompete dourado e anunciar em latim a iminência de um evento celestial.Idéias que pareceriam loucura a quarenta metros dali, na companhia de um grupo de adolescentes finlandeses e bacias de óleo para fritura, tinham conseguido - por obra da arquitetura - adquirir suprema importância e majestade.
* trechos do livro arquitetura da felicidade, de alain de botton.

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