25 de abril de 2009

Onde está a minha bicicleta?


Movido a energia 100% humana

Uma densa névoa ainda cobre o sol quando Alexandre Delijaicov sobe a rampa da garagem do edifício onde mora, com sua bicicleta azul de 18 marchas. Há dez anos, ele usa apenas a bicicleta como meio de transporte. Os trajetos variam conforme o dia, numa rotina programada. Hoje, como toda terça-feira, ele vai para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, a FAU da USP, onde é professor de projeto.
À primeira vista, Delija, como os alunos se referem a ele, é um homem calmo, de fala lenta e sincopada. Alto, magro, de cabelos pretos bem curtos, tem a fisionomia marcada por óculos retangulares, cuja armação marrom acompanha só a parte de cima das lentes. Quando ele começa a se agitar, o que será perceptível apenas mais tarde, os óculos se inclinam e perdem a simetria no rosto.
A bicicleta de Delijaicov tem um alforje no bagageiro onde ele guarda calças impermeáveis e uma capa, para os dias de chuva. Ele costuma vestir jeans, camisa branca de mangas compridas, com os punhos abotoados, calça tênis de camurça marrom-café e leva uma bolsa de lona preta cruzada no peito. É difícil imaginar que essa seja a indumentária ideal para percorrer sete quilômetros e meio de bicicleta. A maneira de se vestir, no entanto, é a primeira característica que diferencia o professor de arquitetura da maioria dos ciclistas. Para ele, andar de bicicleta não é um esporte; é um jeito de chegar ao trabalho. Necessariamente, ele não pode transpirar ao pedalar: nenhum professor (exceto os de educação física) pode dar aula suando.
Por isso, ele sai sempre cedo, com toda a calma do mundo, quando os carros ainda não ocuparam todas as áreas de estacionamento, modificando a largura das ruas. É seu “exercício diário de desaceleração”, diz. Sobre duas rodas ele percorre de doze a catorze quilômetros, entre ida e volta, e desvenda uma cidade que os paulistanos geralmente não vêem, protegidos pelos vidros dos automóveis e ônibus.
Duas vezes por semana, ele vai de casa, no bairro do Itaim, de classe média alta, para a Cidade Universitária. Nos outros três dias, segue para o escritório de projetos da prefeitura, no Largo do Paissandu, no centro da cidade. Costuma levar de 35 a 40 minutos de porta a porta. As direções são quase opostas, e as condições também: enquanto para a USP o caminho é plano e mais longo, para o centro é acidentado, cheio de subidas.
O professor reconhece que pedala como uma “tartaruga”, e atribui a essa prudência o fato de nunca ter tido um acidente. Seus roteiros são fixos e evitam as grandes avenidas. Ele conhece o nome de cada rua por onde passa, mantém sempre a direita, na mesma mão dos carros, e segue todas as normas do Código de Trânsito Brasileiro. Também inventa gestos que, para a maioria, não fazem muito sentido. Como, por exemplo, o braço estendido à esquerda para indicar “não me cortem, vou seguir em frente”.
Como foram testados, os hábitos minuciosos de Delijaicov têm razão de ser. A camisa branca serve para refletir a luz, e as mangas abotoadas, para que qualquer movimentação de seus braços seja bem visível. Nunca ouvir música enquanto pedala é outra de suas normas. “É para escutar os sons da cidade, como canta o Arrigo Barnabé”, diz. Levar o laptop na bicicleta foi um teste que deu errado. Nas duas tentativas, a trepidação danificou a placa de vídeo. Há outra coisa que ele evita a qualquer custo: óculos escuros. “Tenho que captar o olhar do motorista e ele o meu, ele tem que saber que estou olhando para ele”, diz. “Nada substitui o olho no olho na comunicação humana. Você seduz e oprime pelo olhar.” No passado, o professor chegou a usar óculos escuros. Mas se deu conta de que levou um número de fechadas maior do que o habitual. “Pelo olho, você capta o motorista que é cínico, safado – quando você está de óculos escuros, o cara finge que não lhe vê.”
Apesar de tantos cuidados, Delijaicov comete diariamente uma enorme imprudência: não usa capacete. Seu argumento, ou sua desculpa, como ele mesmo reconhece, é que o capacete retira o olhar periférico e um pouco do ouvido, coisas que interferem no “equilíbrio sinestésico”. Mesmo sem capacete, ele não se sente desprotegido. A confiança é um patrimônio que conquistou, e talvez derive do fato de conhecer todos os sinais de trânsito, cruzamentos, ondulações do asfalto, valetas. Por onde anda, cumprimenta as pessoas que, todos os dias, naquela hora, atravessam seu caminho. Os seguranças de terno escuro do Jardim Europa, o carroceiro da Rua Ibiapinópolis, perto do Shopping Iguatemi, um ou outro ciclista com roupas simples que, como ele, também vai ao trabalho, só que provavelmente para uma construção.
A travessia das alças que dão acesso à ponte sobre o Rio Pinheiros é um dos maiores perigos no seu caminho para a USP. Não há sinal e, em função das curvas, às vezes é impossível ver os carros se aproximarem, em alta velocidade. Ninguém pára para dar passagem aos que aguardam na faixa de pedestres, e o único jeito é atravessar correndo, numa brecha eventual. É o que fazem todos: o cara de bicicleta, quem está a pé e a mulher de casaco vermelho, com uma criança no colo e outra pela mão.
Se dependesse do professor, os motoristas seriam reeducados à força. Um decreto federal suspenderia todas as carteiras de habilitação, como se fossem portes de armas. “A frota paulistana de cinco milhões de automóveis está nas mãos de uma minoria”, sustenta. “São eles que alimentam esse poder mesquinho e deixam resignada a maior parte da população. Olhe bem quem faz fila dupla na porta das escolas, sentadas em carros blindados: são pessoas acima do peso, que deveriam estar numa academia.”
Delijaicov já alterou percursos devido a ruas residenciais que foram fechadas com grades e portões. Quando toca nesse tema, ou fala de injustiças, o professor se empolga. Não adianta perguntar o que quer que seja. Uma pergunta sobre sua percepção da cidade como ciclista pode ter como resposta a atitude do Brasil na guerra do Paraguai, os diques da Holanda ou a inutilidade “daquela turminha” de Saint-Germain. “Você vai achar que eu sou um ressentido, mas o nosso horror é esse comportamento do colonizado que ficou com o olhar do colonizador.”
Vista pelos olhos de um ciclista, a percepção da cidade é, sem dúvida, mais dura. A poluição nos trechos mais congestionados, onde há excesso de fumaça e poeira em suspensão, faz o nariz escorrer continuamente. As ruas, mesmo nos bairros nobres, sentidas pelos solavancos do selim são mais esburacadas e remendadas que quando amortizadas pela suspensão de um automóvel. E na orientação que o guidão traça no solo é preciso estar atento para cada obstáculo, o que torna impossível ignorar os sem-teto que dormem na subida das passarelas ou na ponte da Eusébio Matoso. São detalhes de São Paulo que o paulistano motorizado tende a evitar.
A idéia, bem brasileira, segundo a qual a bicicleta é um meio de transporte para pobres, deixa Delijaicov irado. Mas ele mesmo já se acostumou à discriminação. Quando sobe uma das ruas de comércio de luxo da zona oeste, à noite, na volta da faculdade, já nem liga ao ouvir o barulho das portas dos automóveis sendo travadas, à medida que sua proximidade fica perceptível pelo retrovisor.
Numa noite em que voltava da Faculdade de Belas Artes, onde lecionava, a corrente estourou e, sem opção, ele teve que empurrar a bicicleta grande parte do caminho. No meio do trajeto, no Jardim América, um guarda de rua se aproximou dele e falou penalizado: “Pô, amigo, por que você não compra uma motoca?” Um de seus vizinhos também já havia dito à sua mulher: “Fala para o seu marido que não fica bem um professor da USP ir trabalhar de bicicleta”.
Para quem vê de fora, o campus da USP parece um paraíso para os ciclistas. De perto, é nele que o professor atravessa alguns dos trechos mais complicados do seu trajeto diário. As rotatórias são perigosas, e as fechadas, constantes. Quando o sinal fecha, e está próximo a um ponto de ônibus, ele espera pacientemente. É mais um de seus procedimentos: “Nunca ultrapasso um ônibus num sinal, ou na hora do embarque e desembarque: alguém pode descer, e aqueles segundos podem ser fatais”. Enquanto pedala pela praça da reitoria, Delijaicov explica que “o traçado da cidade universitária é de um urbanismo rodoviarista, feito para o automóvel”, exatamente como Brasília. “É uma ‘pseudocidade-jardim’, que usa argumentos de parques urbanos, mas que no fundo não passa de uma falácia.”
Além da FAU, o professor ciclista trabalha no Departamento de Edifícios Públicos, divisão da prefeitura onde arquitetos e engenheiros projetam de crematórios a escolas. É um trabalho, coletivo e anônimo, do qual se orgulha muito. Outra marca no currículo é sua tese sobre a navegação fluvial urbana. “Muitos me acham um louco ou um romântico, com um pensamento típico dos séculos XVIII e XIX.” Pelas demandas da tese, Delijaicov passou quinze anos visitando a Holanda periodicamente. Lá, aprendeu muito sobre o ciclismo urbano. Sobre o funcionamento prático do que chama “trilhos urbanos”, sistema que prevê a integração de diferentes meios de transporte e o incentivo público a todos eles, em detrimento do automóvel.
Na contramão da ideologia brasileira, os países europeus agregam cada vez mais a bicicleta aos meios de locomoção. O aquecimento global, as conseqüências do uso do automóvel e os congestionamentos constantes das grandes cidades são as razões óbvias. O exemplo mais recente vem de Paris, onde uma frota de bicicletas públicas cinza-chumbo tomou conta das ruas, no mês passado, e começou a mudar a paisagem da cidade. Na primeira fase do plano Vélib, orquestrado pela prefeitura, foram colocadas à disposição dos parisienses 10.648 bicicletas em 750 estações. Por um custo irrisório é possível andar sobre duas rodas a distância desejada – os primeiros 30 minutos são de graça. O objetivo da municipalidade de Paris é que, além de servir para pequenos trajetos, a bicicleta seja conectada a outros transportes. Providencialmente, grande parte dos bicicletários foi construída junto às estações de metrô, trens e aos pontos de ônibus.
O plano chega a Paris depois de ter obtido bons resultados em Lyon, onde foi implantado em 2005. A meta é que até o final deste ano a capital francesa tenha 20 600 bicicletas da prefeitura posicionadas em 1 451 pontos “Vélib”, ou seja, um a cada 300 metros – quatro vezes mais que o número de estações de metrô. Os franceses já falam na revolução das bicicletas como marco do novo “transporte coletivo individual”. Com nomes e apelos publicitários diferentes, sistemas semelhantes foram introduzidos em Viena, na Áustria, Gijon e Córdoba, na Espanha, e Bruxelas, na Bélgica. Na França, já existe em Rennes e está em fase de lançamento também em Aix-en-Provence e Marselha. Há muito as bicicletas públicas fazem parte da paisagem urbana na Holanda e na Dinamarca.
Delijaicov só pode ver com bons olhos iniciativas como essas. Especialmente porque a mais recente vem da França. “Nunca olhamos para o nosso vizinho, mas uma experiência urbana parisiense pode ter um impacto positivo sobre toda a América Latina,” diz ele. “Basta dizer que aqui ao lado, em Bogotá, fizeram uma rede de ciclovias para valorizar o passeio público, e ninguém no Brasil deu a menor atenção.”
Embora não goste de ser visto como um ciclista militante, o professor está envolvido em trabalhos de extensão, na própria faculdade, para o estudo e a viabilidade de ciclovias urbanas. Desde que ele e a mulher venderam um dos carros da família, e transformaram o outro numa “espécie de adorno da garagem”, cada vez mais ele se confessa seduzido pelas vantagens de desfrutar o espaço público.
Aos 45 anos, e com dez de experiência nos pedais, Delijaicov tem esperança na mudança de comportamento da sociedade com relação aos ciclistas, e sente uma espécie de gratificação por fazer sua pequena parte todos os dias. Há um grupo de discípulas que seguem seus passos no ciclismo. Algumas vão em frente, outras desistem depois de um tempo, por considerar que São Paulo não é receptiva à bicicleta. É um argumento que não o demove de buscar novos adeptos. “Você também pode mudar e largar o automóvel, basta querer!” – insiste com os alunos, ou com qualquer outro interlocutor com quem cruza pelas rampas da faculdade. “O que é um século na história das cidades? Nossas cidades são como nós, obras inconclusas, não passam de acampamentos – acampamentos de refugiados que não sabem pra onde ir. Só nós podemos nos opor a essa mercantilagem vil e peçonhenta do espaço urbano. O inferno não são os outros, somos nós.”
Quando fala de questões urbanas, o professor é assim mesmo, grandiloqüente. Depois, silencioso e atento a tudo, segue solitário pelas ruas de São Paulo com sua bicicleta holandesa, sem grife, onde se lê apenas “on the road”. Se você o acompanhar, por uma manhã que seja, nunca mais vai olhar os ciclistas da mesma forma.


Maria da Paz Trefaut
Revista Piauí

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